Os filmes de terror como metáfora para o preconceito

Alguns anos atrás uma nova forma de se fazer filmes de terror começou a surgir: o terror como metáfora para males do corpo e da alma. O Babadook abordava a depressão pós-parto, Quando as Luzes se Apagam mostrava os efeitos devastadores da depressão de uma mãe na vida dos filhos, O Sono da Morte mostrava uma luta contra o câncer e suas consequências em uma criança. Tudo disfarçado de filme de terror com direito a assombrações, visões e afins.

Eis que depois de Corra, estas metáforas partiram para uma outra doença que afeta a humanidade, talvez ainda mais prejudicial que as citadas acima: o preconceito.

Novamente sob um manto de filme de terror, o preconceito racial foi jogado na tela de forma tão contundente que Corra chegou ao Oscar nas principais categorias e conquistou público e crítica. E, como sempre acontece, gerou frutos.

ATENÇÃO: o texto abaixo contém spoilers dos filmes A Escolhida (Antebellum) e Spiral. Se você quiser assistir aos filmes antes de ler, fique à vontade. Os links estão neste texto.

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Quando A Escolhida começa, vemos uma plantação de algodão do século XIX, com negros colhendo, sendo açoitados e até mortos por soldados americanos. Vemos uma protagonista (vivida por Janelle Monáe) que tenta fugir daquela situação degradante. Mas algo está errado.

Se você tiver visto o trailer antes (e neste ponto, ele vende o filme completamente ao contrário), vai notar que também existe uma outra “realidade” em que a mesma personagem é uma mulher poderosa nos dias atuais. Ela voltou no tempo? Está em uma realidade paralela? É uma vida passada?

No final do filme descobrimos que ela está, na realidade, presa em uma fazenda nos dias atuais que, como uma espécie de parque temático macabro, sequestra pessoas negras para obrigá-las a viver como escravos.

Está ali o racismo disfarçado de filme de terror: aquelas pessoas (entre elas um senador), se acham no direito de sequestrar pessoas negras e colocá-las naquela situação, marcando-as com ferro em brasa, estuprando-as e queimando seus corpos sem vida em um grande forno, simplesmente pelo fato de serem negras. Numa mistura de 12 Anos de Escravidão com A Vila, aquelas personagens terão que aceitar de cabeça baixa uma volta à escravidão ou enfrentar e correr o risco de morrer para sair daquele lugar.

Em outro exemplo recente, Malik e Aaron são um casal de homens que se muda para uma pequena cidade com a filha adolescente de um deles em Spiral. Malik (vivido pelo jurado de Canada’s Drag Race, Jeffrey Bowyer-Chapman) toma remédios para se recuperar de um trauma que teve na adolescência e parece ver coisas.

Quando a vizinhança parece ameaçar a vida do casal, seu marido não acredita nele e as coisas começam a degringolar. Parece existir um grande segredo naquela cidade, mas quem está falando a verdade? Malik tem episódios de amnésia, não parece uma testemunha muito confiável.

Até que descobrimos que sim, Malik vê coisas que não existem, mas isso servirá de desculpa para que os moradores da cidade imponham seu preconceito sobre o casal: a família será morta e a culpa cairá sobre ele. Afinal, eles são gays, ele toma remédio, ninguém vai suspeitar que ele seja capaz de matar o marido, a enteada e se matar depois.

Está lá: com cara de filme de terror, uma história que joga na nossa cara o preconceito contra LGBTs. A família será morta pelos moradores da cidade em uma espécie de ritual macabro simplesmente por ser diferente. Afinal, como fala um dos personagens no final “todos temem o diferente”. Neste caso, o preconceito não fica somente com o casal LGBT. Na última cena do filme, vemos um casal com características muçulmanas se mudar para a casa que um dia foi de Malik e Aaron, sob os olhos atentos dos moradores.

Estes dois filmes assustam mais por mostrar um preconceito que, a gente bem sabe, ainda existe do que pelo terror que impõem na trama. As personagens sofrerão por serem quem são, sem direito de resposta e sem justificativa. Apenas por existirem. E isso assusta mais que qualquer fantasma ou monstro de cinema.

O mais assustador é saber que as duas falas que mais impactam e chocam nos dois filmes, são reais:

“Estamos em lugar nenhum… e em todos os lugares”, diz o senador para a personagem de Janelle Monáe em A Escolhida, sobre os brancos que se acham superiores.

“Você a matou, você matou seu marido. E depois se matou. Isso é o que todo mundo vai dizer. E nenhuma alma vai questionar isso por causa de quem você é. As pessoas não vão se importar, elas já se decidiram. Elas têm medo de você. E quando as marés mudarem, haverá outra pessoa para se temer. Sempre há e sempre haverá.”, diz um dos moradores da cidade para Malik.

E a verdade por trás disso assusta.

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